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Mais um



By  Coletivo Poesia Marginal     14:00:00    Marcadores: 
 

   
        A água vaza do bueiro. É madrugada e, na noite silenciada a vida segue. Qual a água, do jeito que dá, por onde encontra caminho. Dá para ouvir os murmúrios, a TV ligada alertando sobre como economizar água, e a água vaza da boca de lobo. Ninguém reclama, não hoje. 'Tá lavando a rua do sangue. Sangue que não vazou do corpo do adolescente executado, jorrou. "O pescoço dele parecia um chafariz, vey", Dona Ana ouviu antes de dormir, depois de ouvir muita coisa. Primeiro os tiros, pelo menos cinco. Pra ter certeza que o arquivo tava queimado igual os becks vendidos pro seu assassino, que no outro dia ia dizer "Ele procurou", Poncio Pilatos moderno, lavando a mão, em sangue, pra não perder o costume.
            Depois veio a zoada, a revolta. Dona Ana já participou, mas não tem mais saúde pra isso. Ficou rezando, torcendo pro filho morto não ser o seu, pro ônibus queimado não ser o que precisaria pegar daqui seis horas para ir pro trabalho e rezando por perdão, para seu coração, agora egoísta. É que se não for explode de dor, justificava. Ela queria sair dali. Um local melhor. Dona Ana precisava vazar. Dona Ana precisava que o moleque jorrando não fosse seu, que o ônibus queimando não fosse seu.
            Dona Ana rezava e a noite seguia, silenciada, mas não silenciosa. Gritaria, estouros. Coração batendo rápido demais. O céu coberto da fumaça. Pneus, ônibus, mas bem podiam ser corpos, tão podre era o cheiro. Tão podre era a fumaça, tão densa. Parecia que nunca mais ia sumir. Cada cochilo um pesadelo. Era a condenação que sofria sempre que matavam alguém. A condenação que sofria sempre. No horário, o ônibus de dona Ana passou. Não que ela estivesse no ponto. Uns minutos depois, a porta do barraco seria aberta. Mais um desejo atendido, o moleque morto afinal não era o dela. Só faltava um desejo, o perdão. Mas esse não podia ser consentido. Dona Ana estava errada ao dizer que tinha um coração egoísta, ainda que certa ao dizer que se não fosse o coração explodiria de dor. Fazia horas que Dona Ana não ouvia mais a água vazando na rua, nem tinha pesadelos. Dona Ana não podia mais pegar seu ônibus, nem consolar seu filho da dor de perder a mãe.

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